LEMBRAM DO ROCKPORT ?

Presenciei há pouco um episodio do qual participei diretamente, mas que o folclore e a tradição oral modificaram de tal modo que se tornou uma ficção sem fundamento. Com a tradição oral é aquela coisa. Cada ouvinte apresenta a sua própria versão até que a original desaparece. Até nos Evangelhos temos versões conflitantes. O Sermão do Jesus na Galiléia, segundo Mateus teria sido na montanha e segundo Lucas, na planície. O fato permanece o mesmo, mas há muita diferença entre as descrições.

Mas, voltemos ao Rockport. Calçado Rockport foi uma das criações espetaculares do Mr. Saul Katz, que marcou a sua passagem pela Franca na década dos setenta e oitenta. Oficial da Marinha de Guerra americana na 2ª Guerra Mundial, herdou do pai duas fábricas de calçados, uma em Marlboro, Massachussets onde produzia calçados para golfistas e a outra em Straton, New Hampshire, de calçados femininos. – Na época, em que eu era diretor de uma fábrica em Salvador, Bahia, conheci Vicente Bonnard, que nos visitou com intuito de entabular exportação de calçados para Estados Unidos. Bonnard foi coronel-aviador da FAB, ex-adido militar de Washington, que se radicou nos Estados Unidos e dirigia negócios do Peri Igel, naquela época dono da Supergás.

Quando assumi a gerencia da Pestalozzi em Franca, Bonnard veio acompanhado do Mr. Katz e visitaram a segunda Francal. Mr. Katz ficou impressionado com potencial de Franca e como resultado encomendou três dúzias de amostras que levei logo depois para Marlboro. Caprichamos deveras na confecção e as levei cheio de orgulho. Mas Mr. Katz torceu nariz e me convidou para ficar um mês junto dele na Diamond Shoe, para aprender fazer calçado do jeito que os americanos gostam e querem.

Fiquei.

Num sábado me convidou para ir velejar com ele. Como nunca tinha velejado, muito menos no Atlântico Norte viajei todo feliz no Porsche dele para velejar. Almoçamos em uma aldeia de antigos pescadores de baleias em Rockport, onde o veleiro dele estava ancorado numa marina. Depois do almoço fomos para a marina e passamos pelas barracas dos vendedores de souveniers e bugigangas para turistas. Mr. Katz teve sua atenção despertada pelo bando de turistas de cabelos brancos, evidentemente gente que era gente, bostoniana.

Parou e o domingo acabou. Adeus veleiro. Até hoje não sei como é velejar no mar aberto. Mr. Katz se juntou ao bando de turistas e observamos como um hippie descalço, desarrumado, vendia aos turistas calçados e botas costuradas a mão, sem sola, de um couro de espessura absurda, cheirando a óleo de baleia. À modo hippie, maltratava os compradores – Pare de escolher, pare de mexer! Pega o seu pague e caia fora! – Isso foi um prato cheio para os bostonianos que riam adorando. Não entendi porque o Mr. Katz se meteu no meio disso.

Apareceu com uma braçada de modelos dizendo, que esta costura é quase igual a que ele viu na Pestalozzi, costurando moccassins. – Vocês podem costurar assim, não é? – Concordei. Voltamos ao carro e ao Marriot-Inn em Newton onde estava hospedado. Desmontou um par, mediu a espessura do couro, fez uma porção de anotações e deixou a coleta de calçados no meu apartamento. Janelas não abriam por causa do ar condicionado central e em poucas horas o apartamento cheirava pior que a cabana do Walter Dwyer, o tal  hippie.

No dia seguinte, estive em New Hampshire, quando telefonaram de Massachussets, que vieram três brasileiros, que mal falam inglês o que devem fazer com eles. Eram três francanos, que foram parar na filial do “consulado brasileiro” na Wall Street 40, no escritório do Bonnard, que não sabia o que fazer com eles e os despachou aos meus cuidados para Marlboro. Fiquei agradavelmente surpreso quando descobri que se tratava (por ordem alfabética) de amigos Miguel Heitor Bettarello, Osmar Naves e Vainer Finatti. Sentei com Osmar no meu apartamento e mostrei o calçado mal cheiroso a ele. Osmar disse que se for só isso podemos produzir na hora. Era isso que o Mr. Katz quis saber e ouvir.

Poucos dias depois voltei para o Brasil e em vez de ir para Franca, fui do Galeão direto para o Cortume Carioca no Rio de Janeiro, que naquela época pertencia a suíça Bally e era dirigido por alemães e suíços, todos conhecidos ou amigos da gente. Mostrei a eles o couro que pretendíamos usar. Não havia problema, tinham departamento de couros técnicos que já produzia couro praticamente igual, só precisava modificar o modo de engraxe e o couro estava pronto. E veio a pergunta crucial: - Como vamos chamar este couro? – Me lembrei da visita e do passeio frustrado no veleiro e sugeri “Rockport”. E o nome foi aceito por unanimidade. Nasceu Rockport.

Nome registrado e hoje famoso, depois que a Reebok pagou 119 milhões de dólares ao Mr. Katz, para ficar com a marca e a produção. Uma marca que nasceu num domingo ensolarado no pitoresco porto de Massachussets.

Mas quase estou esquecendo o que me levou a escrever estas reminiscências. Mr. Katz era grande técnico, mas perfecionista ainda maior. Nos deixava loucos com as suas exigências. Depois da enésima amostra, soltando baforadas com seu cachimbo dizia – Este no bom. Costura frente mais quatro milímetros, costura atrás menos dois milimetros. – Amostra feita, trazida para apreciação, lá vinha ele: - No bom, costura trás mais dois milímetros menos! – E lá vamos nos fazer outra amostra.
Num dia apresentamos uma botinha, cuja língua ultrapassava em uns três milímetros o cano, como era normal. Mr. Katz mastigava o bocal do cachimbo olhava, pensava, olhava mais um pouco e depois de longos minutos do silêncio declarou - No bom. Língua curto. Mais três milímetros! – Naquele momento, de caso pensado, provocativamente, talvez para descarregar a tensão acumulada durante dias, peguei a amostra da mão dele, puxei com força a língua, couro naturalmente cedeu e coloquei o calçado na frente dele: - Será que assim fica bom? – Mr. Katz entendeu que pediu uma coisa ridícula, levantou se, bateu a porta e nunca mais nos falamos.

Hoje sei que não agiria mais assim, procuraria controlar-me um pouquinho mais, mas hoje tenho mais trinta anos de experiência de vida e apreendi a viver com mais tolerância e mais paciência. Mentalmente peço desculpas por esta minha provocação para a alma do Mr. Katz e agradeço a ele os ensinamentos que me proporcionou. – Bem, esta é a versão correta da história que é contada por aí. Quem pode corroborar a veracidade são as testemunhas que presenciaram a cena – Ernani D´Andrea, Zé Tellini, Jorginho modelista, embora houvesse mais gente na sala, mas são estes de quem me lembro.

Que fique consignada esta historieta sobre o calçado Rockport, que foi uma peça importante na história da exportação de Franca, deu emprego para muita gente e muitas empresas obtiveram lucros significativos com a inventividade do Mr. Katz.

Zdenek Pracuch
12/12/11